domingo, 26 de agosto de 2012

HISTÓRIA ESTRANHA -Luís Fernando Verissimo



Um homem vem caminhando por um parque quando de repente se vê com 


sete anos de idade.

Está com quarenta, quarenta e poucos. 

De repente dá com ele mesmo chutando uma bola perto de um banco onde 

está a sua babá fazendo tricô. 

Não tem a menor dúvida de que é ele mesmo.

Reconhece a sua própria cara, reconhece o banco e a babá. 

Tem uma vaga lembrança daquela cena. 

Um dia ele estava jogando bola no parque quando de repente aproximou-se 

um homem e... 

O homem aproxima-se dele mesmo. Ajoelha-se, põe as mãos nos seus 

ombros e olha nos seus olhos. 

Seus olhos se enchem de lágrimas. 

Sente uma coisa no peito. 

Que coisa é a vida. 

Que coisa pior ainda é o tempo. 

Como eu era inocente. 

Como meus olhos eram limpos. 

O homem tenta dizer alguma coisa, mas não encontra o que dizer. 

Apenas abraça a si mesmo, longamente. 

Depois sai caminhando, chorando, sem olhar pra trás.


O garoto fica olhando para a sua figura que se afasta. 

Também se reconheceu. 

E fica pensando, aborrecido: quanto eu tiver quarenta, quarenta e poucos 

anos, como eu vou ser sentimental!

Livro- COMÉDIAS PARA SE LER NA ESCOLA.

VIVER NÃO TEM REMÉDIO.


   Para tudo tem remédio. Quem, na infância, não ouviu essa frase da boca de um parente mais velho, de um avô, de uma avó? Habitualmente, terminava pela expressão “meu filho”, acentuando a característica de afago carinhoso da frase:
            - Para tudo tem remédio, meu filho.
            Entendíamos que era um consolo pelas dificuldades que enfrentávamos e que só o sábio tempo saberia cicatrizar as marcas das feridas que, aos olhos de hoje, nos trazem um sorriso condescendente: a bola furada, a bicicleta batida, a viagem perdida.
            A época atual, marcada por uma forte ideologia bitologizante, quer transformar esse carinho em verdade científica. Tomando a sério a expressão “para tudo tem remédio”, querem nos levar a concluir que todo problema é doença, pois é doença aquilo que se trata com remédio.
            Surgem livrinhos para ensinar as pessoas a se autodiagnosticar. São amplamente difundidos em serviços de saúde. Ensinam, por exemplo, a detectar a depressão. Trazem uma lista de questões elementares. Se você responder “sim” a mais de três, estará feito o diagnóstico: você tem dormido demais? Tem tido insônia? Você engordou nos últimos meses? Andou emagrecendo? Tem notado uma certa apatia, desinteresse? Tem se sentido excitado? Etc.
            O teste é ironicamente perfeito: ninguém escapa. Não há possibilidade de você não ser enquadrado nesse gênero de questionário. Feito o veredicto, na página seguinte indica-se o tratamento – algum remédio novo e avançado – e tranqüiliza-se aquele que sofre, explicando-se que a depressão é uma doença como outra qualquer, como quebrar uma perna ou contrair um vírus, e que a pessoa não é em nada responsável por seu próprio sofrimento. Esse é o ponto-chave: a irresponsabilidade pelos próprios sofrimentos.
            Não misturemos, nesta crítica, o imenso avanço verificado na farmacologia nos últimos anos. O problema é a ideologia que veio junto. Trata-se do neodarwinismo, que busca na biologia a explicação de todos os afetos. O neurobiólogo português Antonio Damásio, professor nos Estados Unidos, e o sociólogo nipo-americano Francis Fukuyama contribuem à fama dessa visão, em alta no mercado daqueles que acham viver muito complicado. E que é melhor, como os animais, já trazer no código genético a lição de casa feita do que se deve ou não desejar, amar, e de como gozar plenamente, como sugere Fukuyama em A Grande Ruptura.
            A menina apaixonada poderia corrigir, com medicamentos, o namorado capenga, transformando-o em um príncipe potente, magro e bem-humorado ao oferecer-lhe coquetéis repetitivos de Viagra, Xenical e Prozac. Médicos começam a ser agredidos em ambulatórios públicos quando se recusam a prescrever remédios a seu ver inadequados ao paciente e que, no entanto, lhe são violentamente exigidos, como se não dá-los fosse negar, ao paciente, uma felicidade de propaganda.
            O fenômeno do controle biológico do bem-estar e da sexualidade também apresenta repercussões sociais. Quem não se lembra da história do menino de seis anos de idade que, ao mostrar a língua para a professora de uma escola norte-americana, foi punido como pervertido sexual, pois estaria fazendo uma proposta indecorosa? Procura-se padronizar tudo, cada gesto, cada cumprimento. Triste fim daquilo que ficou conhecido como politicamente correto...
            E quando alguém comete um desatino, como matar a namorada, e esse alguém é uma pessoa como todo mundo, sem a caricatura do meliante, imediatamente buscam-se explicações médicas, como se os “normais” estivessem a salvo de desatinos. Não, não há como transformar a vida em algo irresponsável, insosso, inodoro, incolor, onde tudo teria hora e lugar predeterminados.
            Se doença tem remédio, a vida não tem; ela é um renovado contrato de risco. Fico com a máxima do psicanalista Jacques Lacan: “De nossa posição de sujeito somos sempre responsáveis”. Surpresas, encontros, ocorrem todos os dias. Porém, o sentido que damos a eles é de nossa responsabilidade.
            Grandes, podemos dizer ao vovô:
            - Viver não tem remédio. Que bom!
Jorge Forbes
(Texto retirado do livro: Você quer o que deseja?) 2011
Psicanalista.

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